In Memoriam PAULUS GERDES (por Ubiratan D’Ambrosio)

Texto publicado originalmente en http://professorubiratandambrosio.blogspot.dk

O mundo entristeceu com a morte de Paulus Pierre Joseph Gerdes, no dia 11 de novembro, dia em que ele completaria 62 anos de vida. O mundo fica privado de um grande educador no sentido amplo, de um pensador e pesquisador interessado e rigoroso e de um grande amigo, para quem teve oportunidade de conhecê-lo e privar com ele. Nossas condolências à família e aos seus discípulos, colegas e amigos.

Minha relação com Paulus era muito especial. Conheci o Paulus, em meados da década de 70, um jovem de pouco mais de 20 anos. Ele foi um dos primeiros aderentes ao movimento de etnomatemática, que estava se iniciando, e tornou-se uma liderança na área.

Sua trajetória de vida foi muito especial. Nasceu na Holanda, em uma família tradicional. Seu pai era equivalente a um ministro de estado para cultos religiosos. Paulus estudou na Universidade de Nijmegen, onde recebeu o título de Bacharel (com louvor) em Matemática e Física, em 1972. Teve uma experiência em missão humanitária no Vietnam, retornou para Nijmegen, fez o Bacharelado em Antropologia Cultural em 1974 e em 1975 terminou o Mestrado em Matemática. Ainda na Holanda, tornou-se docente no “Centro do Terceiro Mundo”, com ligações com os movimentos de libertação e de anti-apartheid da África Austral. Em finais de 1976 foi para Moçambique, onde passou a morar, tornando-se cidadão moçambicano e constituindo família. Desde sua chegada, foi professor na Universidade Eduardo Mondlane até 1989, quando se transferiu para a Universidade Pedagógica, aí permanecendo até o fim de sua vida.

Em 1986, fez o Doutorado na Universidade de Dresden, Alemanha, com tese sobre O Despertar do Pensamento Geométrico e em 1996 retornou para um segundo Doutorado com tese sobre Geometria Sona: Reflexões sobre tradições de desenhar na areia entre os povos da África ao Sul do Equador, na Universidade de Wuppertal, Alemanha.

Como acadêmico, Paulus foi responsável por inúmeras contribuições à teorização do artesanato e à formulação e solução de questões matemáticas do imaginário e artesanato popular. Todas as suas contribuições têm importantes implicações para uma pedagogia com fortes raízes sócio-culturais.

Paulus era um dos mais importantes pesquisadores sobre Etnomatemática, procurando sempre analisar as bases históricas e epistemológicas da matemática e propondo importantes inovações pedagógicas. Conseguiu organizar um grupo muito ativo de jovens pesquisadores, reunindo matemáticos e educadores. As publicações do grupo, principalmente em Português e Inglês, são um recurso importante para todos os interessados em realizar pesquisas em Etnomatemática em todo o Mundo. Muitas dessas publicações são generosamente disponibilizadas a todos os interessados, grátis ou a baixo custo, no site da editora “Lulu.com”, onde Paulus publicou quase todos os seus livros.

Além das atividades acadêmicas de pesquisa, Paulus esteve sempre envolvido com Educação, especialmente Educação Matemática. A maneira como ele associava a investigação e a educação é exemplar. Fundou, em Maputo, em 1989, o “Centro de Pesquisas em Etnomatemática – Cultura , Matemática e Educação” e, graças a suas propostas inovadoras, foi muito bem sucedido em atrair a Moçambique acadêmicos de todo o mundo, interessados em seus projetos de pesquisa.

Como historiador, Paulus Gerdes contribuiu amplamente para a compreensão da história das ideias matemáticas, teorias e práticas, no continente africano. Sua preocupação era organizar o contexto histórico das práticas existentes e as teorias encontradas nas várias culturas africanas. Seu foco principal era uma ampla pesquisa bibliográfica sobre a História da Matemática na África. Os resultados de sua pesquisa têm sido fundamentais para os historiadores da matemática em todo o Mundo.

Suas preocupações iam além de identificar outros modelos de pensamento Matemático. Ele sentia que a criatividade pode ser melhorada se for restabelecida a dignidade cultural. O período pós-apartheid na África do Sul teve inúmeras repercussões em todo o continente africano. Representou um novo e importante espaço para o desenvolvimento do potencial criativo das populações nativas. A Etnomatemática revelou-se uma importante estratégia para esse renascer da criatividade africana e Paulus Gerdes sempre foi extremamente habilidoso em canalizar esse potencial para formar uma numerosa geração de pesquisadores em Educação Matemática.

Foi responsável por uma mudança de atitude com relação a artesanato e folclore. O artesanato tem sido considerado de menor importância nas reflexões sobre ciência e matemática em todo o mundo e seu aproveitamento em educação tem sido negligenciado. Paulus recuperou, a partir da sua pesquisa com artesãos, a importância fundamental do artesanato como base para o desenvolvimento histórico da matemática. As fontes primárias mais importantes para sua pesquisa foram as práticas artesanais. A pesquisa sobre essas práticas revela a sua fundamentação teórica.

Paulus Gerdes reconheceu que a cultura dos povos, dos artistas, dos artesãos constitui uma fonte inesgotável para a pesquisa matemática e para a Educação Matemática. Professores de matemática de todos os níveis podem aprender, de seus alunos, o que é característico de suas culturas. Os alunos podem mostrar o caminho para se atingir uma prática. O fazer dos artesãos, dos pescadores, dos camponeses, enfim de todos os grupos que dominam uma prática, está baseado num saber que se desenvolveu por árduos caminhos, ao longo de gerações. Destaco de maneira muito especial a exemplar atenção que Paulus dedicou às mulheres na evolução das culturas africanas.

Como bem destacava Paulus Gerdes em seus escritos e em suas conferências, ao se estudar uma demonstração, raramente se consegue perceber como é que se descobriu o resultado. O caminho que leva a uma descoberta é, em geral, muito diferente da estrada pavimentada da dedução. Em uma linguagem poética, Paulus nos diz que “A via da descoberta abre-se serpenteando por um terreno de vegetação densa e cheio de obstáculos, às vezes aparentemente sem saída, até que, de repente, se encontra uma clareira de surpresas relampejantes. E, quase de imediato, a alegria do inesperado “heureka” (gr. “achei”, “encontrei”) rasga triunfantemente o caminho.”

De fato, Paulus foi um poeta no seu pensar como filósofo, matemático, antropólogo e educador.

Para prantear um poeta da vida tão querido por todos nós e insubstituível, peço ajuda a um poeta muito querido que também nos deixou prematuramente, Facundo Cabral. Sua despedida para um amigo expressa muito bem meus sentimentos.

Cuando Un Amigo Se Va

(Facundo Cabral)

Cuando un amigo se va, queda un espacio vacío
Que no lo puede llenar la llegada de otro amigo
Cuando un amigo se va, queda un tizón encendido
Que no se puede apagar ni con las aguas de un rio
Cuando un amigo se va, una estrella se ha perdido
La que ilumina el lugar donde hay un niño dormido
Cuando un amigo se va, se detienen los caminos
Y se empieza a revelar el duende manso del vino
Cuando un amigo se va, salopando su destino
Empieza el alma a vibrar por que se llena de frio
Cuando un amigo se va, queda un terreno baldío
Que quiere el tiempo llenar con las piedras del astillo
Cuando un amigo se va, se queda un árbol caído
Que ya no vuelve a brotar por que el viento ha vencido
Cuando un amigo se va, queda un espacio vacío

Que no lo puede llenar la llegada de otro amigo.
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